Em 20 de janeiro de 2021 (nos termos do Acórdão 56/2021) o Tribunal de Contas da União (TCU) determinou prazo de 60 dias para que a equipe do ministro da Economia, Paulo Guedes, apresentasse cronograma de devolução, ao caixa da União, dos empréstimos feitos pelo Tesouro Nacional aos bancos públicos.

A devolução aconteceria por meio de emissão de títulos da dívida a partir de 2008, envolvendo também os aportes feitos por meio dos IHCDs (Instrumento Híbrido de Capital e Dívida), que é empregado para o aporte de capital no patrimônio da empresa e, ao mesmo tempo, um título de crédito, mas sem data para ser resgatado pelo emissor.

Por isso, os IHCD integram o patrimônio de referência da instituição financeira, para os fins de verificação do cumprimento dos limites operacionais mínimos estabelecidos pelo Acordo Basileia III.

 “A consequência direta dessa devolução será a descapitalização das instituições públicas, que terão menor capacidade de investimento no País, e a venda e privatização de ativos para honrar o pagamento. No caso da Caixa, por exemplo, detentora da maior parte dos empréstimos, a retórica da privatização de suas operações ganha espaço e, com isso, o Brasil segue perdendo capacidade de superar a crise sanitária e econômica, que depende de investimento público e ação governamental”, afirma a coordenadora do comitê nacional em defesa das empresas públicas, Rita Serrano, também representante dos empregados no conselho de administração da Caixa.

Na avaliação do advogado Luiz Alberto dos Santos, que assessora o comitê, o Ministério ou as direções dos bancos públicos poderiam pedir um reexame ao TCU da sua deliberação, ou buscar uma lei complementar que autorizasse as operações de forma definitiva, mas a posição adotada pelo governo, desde 2019, foi de pressionar os bancos para a devolução.

Abaixo, saiba um pouco mais sobre o que representam os IHCDs e a análise jurídica sobre a situação agora em foco.

IHCDs, o que são – Instrumento Híbrido de Capital e Dívida, o IHCD é um valor representado por diferentes tipos de títulos ou contratos emitidos para captação de recursos, visando à capitalização de uma instituição financeira; ou seja, deve ser capaz de aumentar o grau de capitalização e os níveis de alavancagem financeira da instituição. São instrumentos financeiros possuidores, ao mesmo tempo, de características de dívida e de capital próprio. Assim, o termo aplica-se geralmente a instrumentos financeiros capazes de pagar um retorno estável e garantido durante determinado período, possuindo depois a faculdade ou obrigação de serem convertidos em ações, em eventual período de crise. Também se aplica àqueles instrumentos cujo retorno é em parte fixo e em parte dependente da performance financeira; isto é, lucro da entidade financiada. São classificados como híbridos porque possuem elementos de participação societária e, simultaneamente, de dívida. Segundo a Resolução 4.192, de 2013, do Conselho Monetário Nacional, os IHCD devem ter caráter de perpetuidade e ser resgatáveis apenas por iniciativa do emissor; ou seja, o Tesouro não pode forçar a instituição financeira a resgatar ou restituir os valores objeto da operação. Além disso, o resgate deve ser autorizado pelo Banco Central, cumpridas as diversas condições que a Resolução estabelece.

Operações – Entre 2007 e 2013 foram realizadas essas operações entre o Tesouro e os bancos públicos. Dentre as emissões diretas de títulos públicos às instituições financeiras controladas, chama atenção o aporte de R$ 51,1 bilhões sob a forma de instrumento híbrido de capital e dívida. Deste montante, 52,84% foram destinados à Caixa (R$ 27 bilhões); 29,35% ao BNDES (R$ 15 bilhões); 15,85% ao Banco do Brasil (R$ 8,1 bilhões); e 1,96% ao BNB e BASA (R$ 1 bilhão). Os recursos foram utilizados para capitalizar os bancos e ampliar sua capacidade de investimentos no País. A Caixa, por exemplo, teve seis contratos de IHCDs autorizados pelo Banco Central para compor o seu capital principal, entre os anos de 2007 e 2013, com o objetivo de fortalecer a expansão de crédito. Parte deles contém cláusulas que determinam o direcionamento dos recursos para investimentos em saneamento básico, habitação popular, financiamento de material de construção e financiamento de bens de consumo para beneficiados do Minha Casa Minha Vida. Já no Banco do Brasil os recursos foram prioritariamente para financiamento agrícola. O BNDES (Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social), por sua vez, deve devolver R$ 62 bilhões ao Tesouro Nacional até dezembro de 2021, sendo que nestes primeiros meses do ano já foram pagos R$ 38 bilhões.

Análise – Muito embora tenha havido, em todos os casos, autorização legal expressa e, na época da contratação, todos os órgãos reguladores tenham dado aval à operação, em janeiro desse ano, como citado acima, decisão do TCU  fundamentada no Acórdão 56/2021,  determinou que no “prazo de 60 dias, que se encerrou em 26.03.2021, “o Ministério da Economia, em conjunto com as instituições financeiras federais, deveria apresentar a esta Corte de Contas cronograma detalhado de devolução, à União, dos valores recebidos em decorrência da emissão direta de títulos da dívida pública federal, de forma a viabilizar a redução do saldo da dívida pública mobiliária federal e do montante projetado de subsídios creditícios”.

Essa decisão do TCU se lastreia no entendimento de que os IHCDs seriam operações irregulares, por “ausência de autorização orçamentária, tanto para a execução de despesas quanto para a realização de receita de operação de crédito decorrente da emissão de títulos públicos federais”, além de se caracterizarem como “operações de crédito vedadas pelo art. 36 da Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF)”, além de se dar na ausência da Lei Complementar de que trata o art. 163 da Constituição, segundo o qual “lei complementar disporá sobre finanças públicas (inciso I) e emissão e resgate de títulos da dívida pública (inciso IV).

A inexistência dessa lei, contudo, é fato que poderia ser superado tempestivamente, por decisão do Congresso Nacional, como é o caso do Projeto de Lei Complementar 295/2016, já aprovado pelo Senado Federal, e que aguarda deliberação da Câmara dos Deputados, o qual “estabelece, com amparo nos arts. 163 e 165, § 9º, da Constituição Federal, normas gerais sobre planejamento, orçamento, fundos, contabilidade, controle e avaliação na administração pública; altera a Lei Complementar nº 101, de 4 de maio de 2000; e revoga a Lei nº 4.320, de 17 de março de 1964.”

Embora o texto aprovado pelo Senado, segundo a análise do TCU, não tenha suprido a necessidade apontada, nada impede que a Câmara dos Deputados venha a fazê-lo, ou mesmo que outra solução legal seja adotada para superar o entendimento do TCU, que não tem prerrogativa legislativa, nem de declarar a inconstitucionalidade por omissão de lei. Ademais, conforme decidiu o STF no MS 35.410,

“Dentro da perspectiva constitucional inaugurada em 1988, o Tribunal de Contas da União é órgão técnico de fiscalização contábil, financeira e orçamentária, cuja competência é delimitada pelo artigo 71 do texto constitucional, (…). É inconcebível, portanto, a hipótese do Tribunal de Contas da União, órgão sem qualquer função jurisdicional, permanecer a exercer controle difuso de constitucionalidade nos julgamentos de seus processos, sob o pretenso argumento de que lhe seja permitido em virtude do conteúdo da Súmula 347 do STF, editada em 1963, cuja subsistência, obviamente, ficou comprometida pela promulgação da Constituição Federal de 1988.” [MS 35.410 MC, rel. min. Alexandre de Moraes, dec. monocrática, j. 15-12-2017, DJE 18 de 1º-2-2018.].

Contudo, o TCU decidiu naquele Acórdão:

“9.2. firmar entendimento no sentido de que são irregulares os contratos de concessão de crédito analisados no presente processo, firmados entre a União e suas instituições financeiras controladas e realizados por meio da emissão direta de títulos da dívida pública, com vistas à realização de políticas públicas setoriais ou do aumento do capital/patrimônio de referência da instituição financeira, porquanto contrariaram os arts. 2º; 3º; 4º; 11, § 2º; e 13 da Lei 4.320/1964; 32, § 1º, II, e 36 da Lei Complementar 101/2000; e 167, I e II, da Constituição Federal de 1988;

9.3. determinar à Secretaria do Tesouro Nacional que se abstenha de proceder a emissões diretas de títulos da dívida pública em favor das instituições financeiras federais, ressalvadas as destinadas ao Banco Central do Brasil e as demais situações expressamente previstas em lei;”

 

E no item 9.4, em que fixou o  prazo de 60 (sessenta) dias para que o Ministério da Economia, em conjunto com as  instituições financeiras federais, apresentem cronograma detalhado de devolução, à União, dos valores recebidos em decorrência da emissão direta de títulos da dívida pública federal, de forma a viabilizar a redução do saldo da dívida pública mobiliária federal e do montante projetado de subsídios creditícios, TAMBÉM determinou que fosse preservada, em todo caso, “a segurança jurídica tanto dos empréstimos já concedidos a terceiros quanto do aumento do capital/patrimônio de referência das instituições financeiras federais”.

Sem ter esgotado as vias administrativas e políticas para superar o entendimento adotado pelo TCU, o Governo pressiona os Bancos públicos a restituir valores ao Tesouro, para reduzir o desequilíbrio de suas contas. O sucateamento das instituições, porém, contraria o interesse da sociedade da medida em que reduz sua capacidade de atuação num momento em que ela é ainda mais necessária para a retomada do desenvolvimento e redução de danos decorrentes da pandemia Covid-19.

 

Por comiteempresaspublicas.com.br

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