Com 30 anos de experiência e atuação nas mais diversas áreas do Sistema Único de Saúde (SUS), Lumena Almeida Castro Furtado é psicóloga, sanitarista, ex-secretaria municipal de Saúde em Mauá e adjunta em São Bernardo do Campo, secretaria da SAS/Ministério da Saúde em 2015. Atualmente é professora da Uninove e professora adjunta da Faculdade de Medicina da Unifesp

Para falar sobre o Sistema Único de Saúde (SUS), sua importância e os efeitos dos ataques do atual governo, a APCEF/SP conversou com Lumena Almeida Castro Furtado. Confira:

APCEF/SP – O SUS completa 30 anos de existência neste ano. Por que está sofrendo tantas ameaças? Quais são os interesses envolvidos no fim do sistema?
Lumena – Como toda política pública, o SUS disputa “mundos”. Faz parte de uma política pública atravessada por muitas questões que não são homogêneas, não são consensuais.
Quando você coloca como perspectiva um sistema de saúde universal, integral e gratuito, você está se contrapondo a um sistema de saúde como mercadoria, à saúde como algo que alguns podem ter acesso mais qualificado e outros menos. Você está dizendo que a saúde é um direito de todos e que o Estado tem o dever de fazer com que isso seja garantido. Ou seja, ao implementar este sistema, você vai contra interesses econômicos.

APCEF/SP – Como era antes?
Lumena – Você tinha o pré-SUS: o sistema público dava dinheiro para o “dono de hospital privado”, para ele construir o hospital e, depois, o Instituto Nacional de Assistência Médica da Previdência Social (INAMPS) comprava o serviço. Quando não interessava mais vender serviço para o INAMPS, ele fechava as portas para o serviço público e “vendia” só para o privado, mesmo o hospital tendo sido construído com dinheiro público.
Quando se começou a construir o SUS, mudou tudo isso. Há muita gente que não gosta que o SUS seja para todos, universal. Preferiam que fosse para pobres, que fosse menor.

APCEF/SP – Isso porque a atuação do SUS é muito ampla…
Lumena – Sim. Há 30 anos, no Brasil, só tinha acesso a transplantes de alta complexidade quem podia pagar por isso. Hoje, temos o maior sistema público de transplante do mundo, mais de 90% das pessoas fazem hemodiálise pelo SUS. Há imunização pública, sistema de tratamento da AIDS e atenção básica de saúde que cobre mais de 73% da população.
Inverteu-se, por exemplo, a forma de financiamento da saúde mental. O recurso ia para hospícios e manicômios e quase nada para as redes ambulatoriais. Não existiam os Centros de Atenção Psicossocial (CAPS) nem consultórios de rua nem serviços residenciais terapêuticos.
Desde a criação do SUS, duas leis orgânicas (veja box) começaram a efetivar o que a Constituição previa e o SUS passou por um processo de grande evolução.
Em 2015, teve início a cobrança de cerca de R$ 400 milhões de ressarcimento dos planos de saúde particulares em relação ao atendimento ambulatorial de alta complexidade. Tudo isso retira dinheiro da saúde suplementar (planos ou seguros saúde).
As ameaças que o SUS sofre tem muita relação com isso. O último ministro da Saúde, Ricardo Barros, era ligado aos planos privados de saúde e chegou a afirmar: “O tamanho do SUS precisa ser revisto”.
O SUS não sofre ameaças à toa, quanto mais ele der certo mais será atacado, pois se contrapõe ao interesse de quem vê na saúde um espaço para lucratividade.

APCEF/SP – Até porque o SUS não é apenas o atendimento direto…
Lumena – Isso. Todo mundo, de alguma forma, usa o SUS. Quando você diz tudo o que o SUS faz parte no nosso cotidiano, as pessoas se espantam.
Porque o SUS não é só assistência direta a quem está doente. Se você foi a um restaurante, se você escovou os dentes ou se vai comprar um cosmético, toda essa cadeia tem relação com o SUS: os órgãos de vigilância estiveram lá antes de você para garantir que os serviços fossem de qualidade. Desmantelar o SUS significa também destruir este sistema de proteção à população.

APCEF/SP – E como ficaria a saúde caso não existisse o SUS?
Lumena – É importante ressaltar que o acesso à saúde pública é um direito do cidadão. Hoje, pouco menos de 40% da população tem acesso aos planos de saúde privados. Com o desemprego, este acesso será ainda menor, pois a maior parte dos planos de saúde privados são coletivos e tem relação com a empregabilidade.
Isso significa deixar quase 70% da população brasileira sem nenhuma possibilidade de acesso à saúde.

APCEF/SP – O SUS enfrenta outros problemas?
Lumena – Fora os interesses privados, há perda de importância simbólica do SUS na sociedade e isso é intencionalmente construído. As pesquisas realizadas com pessoas que utilizam o Sistema são positivas. Mas há uma sistemática orquestrada para falar mal do SUS. Por exemplo, matérias sobre transplantes, em que a palavra SUS não aparece quando, no Brasil, 99,9% dos transplantes são feitos pelo Sistema. Mas, se há uma grande fila na porta de um pronto socorro, o nome do SUS aparece diversas vezes.
A população construiu a imagem de que o SUS é falido e que só fora do Sistema Único de Saúde é que se tem acesso a atendimento de qualidade. Para se ter uma ideia, praticamente todos os casos de alta complexidade são encaminhados, pelos planos de saúde, para o SUS. A maioria das pessoas que fazem tratamentos contra o câncer são atendidas em hospitais públicos. Não interessa aos convênios médicos este tipo de cobertura.

APCEF/SP – Como é o acesso à saúde no mundo?
Lumena – Os Estados Unidos são considerados o país mais desigual no acesso à saúde do mundo. Praticamente só há o sistema privado. Um pequeno passo havia sido dado pelo governo Obama para tentar garantir atendimento, mesmo que pequeno, aos indigentes, mas Trump já voltou atrás. É um país que tem acesso à tecnologia de ponta para cirurgias, mas está restrito a quem pode pagar.
Canadá, França, Espanha, Portugal, parte da Itália assumiram o desafio de buscar um sistema de saúde que possa chegar a todos. Mas nem Cuba tem, como o Brasil, por exemplo, a assistência farmacêutica dentro da gratuidade do sistema. O modelo de sistema universal de saúde que o mundo todo olha é o da Inglaterra, o primeiro país capitalista que assumiu o desafio de um sistema único universal e avançou nesta perspectiva. Mesmo com os últimos governos atacando fortemente o sistema, o país ainda é referência.

APCEF/SP – Quais as dificuldades para melhorias do SUS?
Lumena – O subfinanciamento e Câmaras Legislativas (federal, estadual e municipal) despreparadas para discutir políticas públicas. Há pressão para construção de um sistema de interesses que não são coletivos. Há a necessidade da qualificação do legislativo para a produção de políticas públicas.

APCEF/SP – Quais as principais forças do SUS?
Lumena – Há mais de 5 mil municípios brasileiros empenhados em fazer acontecer algo em seu território e assumiram a saúde como uma agenda. Alguns municípios investem até mais do que os 15% constitucionalmente exigidos. Cidades como Orindiúva, na região de São José do Rio Preto, e Bauru, são exemplos bastante positivos.
Outro ponto positivo do SUS é o cuidado qualificado, integral, comprometido e centralizado na pessoa dos trabalhadores do Sistema. Mesmo quando entram governos horrorosos, é difícil desmanchar este cuidado.
Temos como exemplo a cidade de São Paulo, que o governo Dória tentou desmantelar a política relacionada à saúde mental e aos cuidados com dependentes de álcool e droga, a resistência dos trabalhadores busca manter o trabalho construído.
Outra grande força do SUS é a relação com os movimentos sociais, lideranças populares, Conselhos de Saúde e políticas específicas que fazem a defesa do Sistema.

APCEF/SP – Para melhorar seria preciso…
Lumena – Melhorar o financiamento, conseguir acordos sociais de forma que o SUS não seja tão vulnerável às mudanças de governo e ampliar o valor social do SUS nos meios de comunicação.

APCEF/SP – Quais as perspectivas no atual cenário?
Lumena – Nunca vivemos, desde a criação do SUS, um momento tão adverso. Até porque nunca tivemos um governo federal tão “de costas” para as políticas públicas.
Mas não vejo outra perspectiva a não ser o avanço do Sistema Único de Saúde. É preciso fazer a sociedade perceber os cuidados de saúde que o SUS oferece como os serviços de atenção básica, os agentes comunitários de saúde e outras ações.
Em vez de apoiar políticas direcionadas aos planos privados e ao lucro é preciso que a população exija melhorias no sistema público, de forma que todos tenham acesso a serviços cada vez com melhor qualidade.

 

Matéria publicada na revista Espaço n. 94, de agosto/2018

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