A pandemia de coronavírus que assola o mundo e o grande risco à vida a que as pessoas estão forçadamente submetidas podem ser importantes gatilhos de adoecimento mental, exacerbando as fragilidades pré-existentes.

O trabalhador da Caixa, além de ter de lidar com a incerteza sobre sua saúde, o futuro e as dificuldades financeiras, muitas vezes, ainda está obrigado a continuar indo trabalhar, sujeitando-se à exposição diária ao vírus.

Em momentos de grande estresse como esse, a necessidade de cuidado psicológico é urgente, e preocupada com isso a Fenae conversou com a professora titular de psicologia da UNB,  Ana Magnólia, que nos está assessorando no projeto de Saúde Mental “Não Sofra Sozinho” conversou conosco sobre as dificuldades enfrentadas nesses tempos.

Confira abaixo a entrevista com a professora Ana Magnólia:

1) Nesse período de isolamento social, quais os riscos em relação à saúde mental?

O isolamento social, hoje um mal necessário, é uma condição que vai na contra mão da própria existência humana. Estamos diante de uma situação paradoxal. Ao mesmo tempo que o inesperado e a incerteza nos desestabiliza abre uma possibilidade para darmos um basta na patologia da indiferença fruto do capitalismo neoliberal.

Trata-se de uma rebelião contra o fato consumado, um modo de persistir e escapar a todos os poderes de destruição, um modo de resistir às desmesuras do consumismo no trabalho, um ato político e ético frente à patologia da indiferença. Acredito que o sofrimento é algo essencial para a humanização. Mas há uma certa tendência dos modelos e práticas de gestão de tentar eliminá-lo.

Esse caminho é extremamente pernicioso para construção da ética humana. Quando se nega o sofrimento como condição humana, instaura-se uma forte possibilidade de produção de sujeitos desafetados com o outro, com as injustiças, sem sentir culpa e vergonha, implicando no risco de ser produzida a patologia da indiferença, e com ela a legitimação de todas as formas de violência no trabalho, a brutalidade assumindo o lugar da normalidade. Talvez essa nova era possa produzir reflexões para aqueles que já tem alma cibernética para voltar a sua humanidade. Mas também pode ser um momento fértil para o capital produzir mais almas cibernéticas afastadas e afastando aqueles que consideram seres de fragilidade, que ao meu ver, é no reconhecimento dessa fragilidade, que encontramos a beleza de ser humano, com nossas possibilidades infinitas de inventar e reinventar formas de existir.

2) Que reflexo isso pode ter nos trabalhadores da Caixa que já lidam com problemas de ordem mental?

Uma intensificação das angústias. Esses trabalhadores devem ser assistidos e devemos lutar para garantir seu tratamento.

3) O fator medo pode ser gatilho para doenças pré-existentes?

Não sei se pré-existentes. Mas de novas patologia sim, penso que o trabalho no capitalismo digital, além da absoluta exclusão e miséria social, pode mobilizar um deslocamento de uma posição subjetiva neurótica para uma posição psicótica. O medo é instrumento de controle do capital desde sua implantação. O discurso capitalista para manejar o medo, emoção primária dos seres humanos, nos promete a plenitude, uma falsa promessa.

4) Fale um pouco sobre a pressão do trabalho remoto, agravada com as funções domésticas, característica deste período.

Nefasto para os trabalhadores. O capitalismo digital “tenta” roubar o que temos de mais precioso, nossos afetos, além do nosso tempo e do massacre ao nosso corpo. A fobia pode ser a doença dessa nova era, além da paranóia.

A desterritorialização entre o público e privado é um modo sofisticado de controle do capital. Nossa força de trabalho está sendo “roubada” pela precarização de condições de trabalho, mas sobretudo, pela precarização dos laços sociais e da ação política. E no momento nos rouba o direito a vida privada. Estamos sem descanso. Essa situação denuncia os modos precários de vida que são reprodução do modo de produção capitalista. Nunca defendi o teletrabalho. Não podemos nos submeter ao que está sendo prescrito pelas empresas, precisamos resistir e encontrar formas de proteger e garantir o trabalho digno, nosso direito. Precisamos colocar limites!!!!

Para ilustrar as consequências do trabalho remoto vou citar a fala e um bancário que trabalha em plataforma digital:

“A mente não descansa nem quando a jornada de trabalho acaba, pois o volume de informações é tanto e as coisas mudam a cada instante que precisamos sempre estar atualizados para conseguir nos manter no mercado. A cada dia a ansiedade aumenta, decorrente da sensação de frustração e incapacidade por não conseguir realizar todas as atividades que necessito com qualidade. Me sinto como se meu cérebro fosse pressionado o tempo todo por uns 200 kilos. Parece que vai explodir. É muito fácil se “perder” em uma tarefa e esquecer até de comer, até o relógio avisar que o ponto eletrônico vai cair.  Estou me tornando menos humano. Eu era metalúrgico e não fiquei doente”

5) Que medidas podem ser tomadas durante esse período, como forma de minimizar os efeitos negativos na saúde mental?

Uma outra guerra se instaura, mal demos conta de confrontar o capitalismo neoliberal e agora nos defrontamos com o capitalismo digital. Defendo a ideia que devemos nos apropriar do conhecimento para criar as armas de luta, que certamente nos exigirá trabalhar na improvisação, na invenção de outros modos de luta. Para refletir sobre essa nova era, finalizo citando o economista Frédéric Lordon que diz:

“A digitalização de tudo o que pode ser digitalizado é o caminho para o capitalismo do século 21 alcançar reduções de custos adicionais …

Se o valor do bem é o tempo que gasto cuidando dos outros, também significa que a economia não pode mais crescer, exceto aumentando o tempo de trabalho indefinidamente.

O capitalismo encontrou uma solução para esse “problema”, o da digitalização excessiva. Se o ser que eu sou pode ser transformado em um conjunto de informações, dados que podem ser gerenciados remotamente e não pessoalmente, então eu posso ser cuidado, educado, entretido sem precisar sair de casa. em casa … eu assisto filmes no Netflix, em vez de ir ao cinema, sou tratado sem ir ao hospital … A digitalização de tudo o que pode ser é o meio para o capitalismo do século XXI para obter mais reduções de custo …

O confinamento geral de que somos sujeitos atualmente faz uso massivo dessas técnicas: teletrabalho, educação a distância, telemedicina … Essa crise de saúde pode aparecer, retrospectivamente, como um momento de aceleração dessa virtualização do mundo. Como ponto de inflexão da transição do capitalismo industrial para o capitalismo digital e seu corolário, o colapso das promessas humanistas da sociedade pós-industrial”.

Essa pedra já tem sido cantada há muito tempo. É hora de despertar e se recriar novas formas de luta. É hora de ser humano, usar nossa capacidade de invenção, que ao meu ver, será impossível de ser capturada.

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